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A NOITE QUE LIBERTA E A VIOLÊNCIA QUE APRISIONA

Somente nesses 10 primeiros meses, o número de mortos no Ceará já correspondem a 1847 pessoas, e somente no mês de outubro mais da metade das mortes aconteceram entre 18h e 5h59. 

A noite de Fortaleza é assombrada pela violência. Ou a gente tá sofrendo com ela, ou temos medo dela. Os relatos de casos de violência vão se somando as estatísticas lançadas mensalmente pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). 

 

Fizemos um compilado de relatos que comprova que a noite de Fortaleza foi corrompida pelo temor, e configurou no perfil dos fortalezenses o medo de se tornar mais uma vítima.

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A VIOLÊNCIA DE FORTALEZA NÃO DORME À NOITE

NATALI CARVALHO E

THAYS MARIA SALLES

Na noite do dia 9 de março de 2018, no bairro mais boêmio da capital cearense, por volta das 23h30, um carro modelo Fiat Punto parou próximo à Praça da Gentilândia, no Benfica, e os ocupantes do veículo começaram a atirar. Foram cerca de 20 tiros. 

 

Era uma sexta-feira e terminar a semana de aula nos bares dos arredores da praça, era praticamente obrigatório para muitos universitários de Fortaleza. As dezenas de mesas dispostas já faziam parte da paisagem da Praça da Gentilândia. Uma rotina quase que religiosa: toda sexta-feira Tuanny Colaço, estudante de Engenharia de Alimentos, da Universidade Federal do Ceará (UFC), ia para o lugar a que chama carinhosamente de “Gentil”, beber uma cervejinha gelada e conversar com os seus. 

 

Em um destes dias de diversão, especificamente no dia 9 de março de 2018, após um show na Concha Acústica, ela e outros amigos foram para a Praça da Gentilândia, eles se divertiram durante a noite toda. Foi quando aconteceu. Naquele noite aparentemente tranquila, 7 pessoas foram mortas, 3 ficaram feridas, e outros tantos, como Tuanny, saíram com escoriações leves e um trauma para a vida toda. 

 

As mortes na chacina vão se somando as estatísticas assustadoras no estado. 1.847 pessoas mortas. Esse é o número que, segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), corresponde as vidas ceifadas somente nos meses de janeiro a outubro deste ano no Ceará, mais de 1000 dessas vidas foram perdidas durante a noite, entre 18h às 5h59. Ou seja, mais da metade dos homicídios ocorreram durante a noite. 

 

Não existem estudos que verifiquem empiricamente a relação entre a iluminação pública e ocorrência de homicídios. No entanto, a pesquisa de Anika Gärtner “Desenho do Espaço Público Para Prevenção da Violência”, sugere que a falta de iluminação em locais públicos está associada à sensação de insegurança e à percepção de abandono por parte das autoridades, podendo contribuir com a prática de alguns tipos de delitos como roubos e estupros.

 

Outras hipóteses sugerem ainda que o autor dos homicídios chega ao local do crime, sozinho ou em grupo, com o objetivo de matar o desafeto e depois fugir. Age, muitas vezes, de noite ou de madrugada, quando não há testemunhas.

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Segundo a estudante, um homem segurava uma arma e atirou várias vezes em direção a outro, que, em uma mesa próxima, reunia-se com amigos. Tuanny fazia o mesmo naquele momento, reunia-se com amigos. Ao relembrar a cena, ela recorda também a sensação de vulnerabilidade que sentiu naquele dia.

 

De acordo com os dados da SSPDS, foram apreendidas 18.574 armas de fogos no Ceará, de 2017 a 2019. O último relatório disponibilizado pela entidade, mostra que 504 ocorreram somente no mês de outubro deste ano, das quais 64,7% aconteceram também entre 18h e 5h59min.


Pelo que ela lembra, ela e os amigos estavam sentados exatamente de frente para a mesa que efetuaram os disparos.

Quando ela ouviu o primeiro tiro ainda não havia associado a situação, ainda não sabia o que estava acontecendo ali. "Lembro que na mesma hora todo mundo foi pro chão, tinha muita gente correndo, muita gente sendo pisoteada”, afirma.

Quando ela percebeu que estava no meio de um tiroteio foi tomada pelo medo. “Tentei ficar calma, segurei na mão da minha amiga, disse para ela correr comigo, mas quando olhei para ela, ela estava chorando muito! Tava sem conseguir se levantar, foi aí que eu realmente comecei a me desesperar”, conta a estudante.

 

Nessa mesma noite, nesse mesmo lugar, estava Genésio Sousa, 29, garçom do Bar Martins, localizado na praça da Gentilândia. Tudo aconteceu muito rápido, segundo Genésio, em um momento servia às mesas, no outro socorria as pessoas as quais ele não sabia o nome. 

 

Após o acontecido o movimento dos clientes caiu, e a paisagem na Praça da Gentilândia foi alterada dramaticamente. Segundo Genésio “muita gente ficou com medo, mais ou menos uns seis meses e as pessoas ainda tinham medo”. O temor afastou as pessoas da praça, Tuanny foi uma dessas, traumatizada passou um longo tempo sem ir ao local. Esse ano, os réus da chacina foram condenados a mais de um século de prisão. 

 

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MÃE HEROÍNA

NATALI CARVALHO

A história de Dona Edna, mãe de Alef Sousa, morto pela polícia no dia 12 de novembro de 2015.

 

Sempre que se fala em alguém que morreu, a primeira pergunta que se faz é: de quê? Alef tinha 17 anos e queria ser do exército. Era famoso entre as meninas, tinha grandes olhos verdes, 1.87 de altura. Passava as tardes andando de skate com os amigos. E morreu quando foi tirado desse mundo pelas mãos dos policiais. 

 

Que decepção cruel! Ter tido meu filho arrancado dos meus braços, morto, ter o sonho de ter seu filho fardado e a própria polícia que você paga, ser a autora do crime, ser a autora de desfazer todo o plano que você criou e frustrar a sua vida”, comenta Edna Sousa.

 

No dia 12 de novembro de 2015, em ações simultâneas nos bairros Messejana, Curió, São Miguel e Lagoa Redonda, o massacre que ficou conhecido como A Chacina da Grande Messejana, acontecia. Foram três horas e 37 minutos de terror. As execuções ocorreram entre 0h20min e 3h57min. Onze pessoas entre eles Alef Souza Cavalcante, foram mortas pela polícia, 

 

Edna Sousa, mãe de Alef, comenta que quando soube do assassinato de seu filho “o desespero tomou conta”, e a sensação de impotência a dominou. Edna passou dias sem poder falar, apenas chorava desesperada. O trauma a fez trocar de casa por não aguentar ver a pista de skate que o filho passava as horas.

 

“Eu passei um mês sem lembrar da fisionomia do meu filho, não lembrava… foi um choque muito grande, pra lembrar eu tinha que ver fotos dele e aquilo me doía muito. Minha filha desligava a televisão porque tudo o que eu via era a morte do meu filho” afirma Edna.

 

O motivo dos assassinatos foi vingança. Após a expulsão do policial militar Marcílio Costa de Andrade e da morte do também policial militar Valterbeg Chaves Serpa, policiais convocam os colegas para o acerto de contas, e se encaminham para o Curió. Apenas duas das onze vítimas tinham passagem pela polícia. Antônio Alisson, 17, por crime de trânsito e Pedro Alcântara, 18, por pensão alimentícia. Sete das vítimas tinham menos de 18 anos. 

 

Durante as investigações da Polícia, o laudo produzido a partir da análise das vítimas revelou a frieza e a covardia dos algozes. Algumas das vítimas foram tirados de dentro de casa, atingidas nas costas, na cabeça, de cima para baixo, mostrando a assinatura típica de assassinos contumazes.

 

“Disseram que meu filho não tinha família, porque quando os policiais levaram o meu filho eles filmaram a cara do Alef e disseram que ele era indigente, porque não tinha documento”, no entanto, segundo Edna, Alef portava o seu cpf, no entanto não foi encontrado em seus pertences. 

 

Edna soube da morte do filho no outro dia. A estranheza começou quando ligou para ele e não foi atendida. Então, sua filha chegou na creche em que Edna trabalhava, com olhos vermelhos de chorar e contou que Alef havia sofrido uma emboscada. “Eu disse ‘como? uma emboscada pro Alef? Mas o Alef não devia nada’ Ai a minha menina disse ‘mãe, o Alef tá morto. Disseram que foi a polícia’. Me faltou o chão”, explica Edna com os olhos marejados. 

 

Dos 44 agentes alvos de denúncia pelo Ministério Público, 34 foram pronunciados para ir a júri popular. Os outros 10 irão a julgamento comum. 33 deles recorrem à 2ª instância com o pedido de também serem julgados por júri comum sem qualificadores. 

 

Quando tinha 6 anos, Alef recitou um poema chamado “A Mãe Heroína”. Dona Edna não sabia que o perderia tão jovem. Unindo forças quando tudo parecia perdido, ela construiu o “Movimento Mães do Curió”, grupo que busca por justiça pelos filhos perdidos; mães que transformaram o luto, em luta. 

 

“Quando acontecer o julgamento eu vou me sentir realizada, sei que meu filho não voltará e que não vou vê-lo. Mas vou me sentir heroína. Porque fiz justiça por ele, porque fiz por ele o que ele teria feito por mim. Serei a sua mãe heroína, como quando ele tinha 6 anos.” encerra Edna.

 

DONA EDNA É MÃE DE ÁLEF

Uma das vítimas da Chacina da Grande Messejana, em 2015 

“QUAL É A CASA DA TRAVESTI?”

Qual é a casa da travesti? quem faz a pergunta é Synestesia Gomes Barbosa, que teve que aprender a lidar com a violência e a noite em Fortaleza. Segundo ela,  a noite se configura não mais em um horário, mas um lugar em que as pessoas trans podem ser elas mesmas. 

 

Para ela, a noite se tornou o lugar para experimentação, resistência e, principalmente, de lar. Mas segundo ela, a noite já deu muita dor de cabeça. “Eu acho que eu não poderia falar da noite sem falar de perseguição, hipersexualização” conta Sy.

 

As violências que ela sofre são para além do ataque físico direto contra seu corpo. Sempre estão oferecendo dinheiro, sempre estão perguntando se ela está fazendo programa. “E isso é uma violência não ‘pior’, mas diferente, porque nos colocam num lugar realmente da prostituição”, lamenta. 

 

Em uma das suas vivências noturnas, após voltar de uma festa, um homem a acompanhou com o carro por um quarteirão, ao parar mais à frente, ele desceu o vidro e estava se masturbando. Sy apenas existia. Ela só acelerou o passo e ele ficou lá. Isso a fez carregar uma máxima, quase como um mantra “nunca andem só”. Para ela, durante o dia o mundo a ignora, durante a noite ele a cerca, a nota, a assedia.  

 

O Ceará foi o Estado que mais matou Travestis e Transexuais do Brasil em 2017, Estado que Matou Dandara e tantas outras travestis e transexuais de formas brutais e abomináveis; sendo o único que aparece nas listas de dados absolutos e em dados proporcionais da Associação Nacional de Travestis e Mulheres Transexuais (Antra) e do Instituto Brasileiro de Transformação e Educação (IBTE). Em 2018 foram registrados 13 homicídios de pessoas trans no estado, colocando o Ceará em quarto lugar no ranking dos assassinatos de Travestis e Mulheres transexuais, em dados absolutos.

 

No Brasil, dos casos contabilizados pela Antra, 53% foram cometidos com armas de fogo, 21% com arma branca e 19% por espancamento, asfixia e/ou estrangulamento. Oito em cada 10 crimes apresentaram requintes de crueldade, como o uso excessivo de violência, esquartejamentos e afogamentos. Ocorreram ainda 11 casos de execução direta com número elevado de tiros - entre 6 e 26 disparos - e  diversos apedrejamentos e decapitações.

 

No que diz respeito às violências sexuais, o Ceará já contabiliza, nesses 10 meses, 1.660 vítimas. 

OS ROUBOS QUE A VIOLÊNCIA COMETE

 

Era o primeiro dia de aula de Pedro Barbosa, um rapaz que acabara de sair do interior do estado para estudar na capital. Natural de Beberibe, Pedro ingressou no ensino superior público ainda com 17 anos, assim que terminou o ensino médio, por meio do programa de cotas para estudantes de escola pública, tendo conquistado o segundo lugar no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). O ano letivo da UFC começava no dia 13 de março de 2017, mesma data em que o estudante de Administração conheceu a violência da noite de Fortaleza.

 

Ele conta que não tinha conhecimento do perigo de andar à noite na cidade. Empolgado para o primeiro dia de aula e sem saber direito como chegar na Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade (FEAAC), ao descer nos arredores do campus Benfica, pediu informações a uma moça que lhe orientou ir pela rua Juvenal Galeno, para acessar à Avenida da Universidade. 

 

Ao fazer o trajeto, foi abordado por dois rapazes que lhe mandaram calar a boca e passar todos os seus pertences, sob ameaça de ser baleado. Sem que ele pudesse reagir, os assaltantes colocaram a mão em seu bolso levando a carteira e o celular do estudante. Pedro nunca recuperou seus bens, mas também em nenhum momento pensou em desistir da faculdade. Contudo, passou a ter mais cuidado para ir a qualquer lugar da capital cearense.

Na mesma rua, um colega de turma de Pedro passava por uma situação parecida. Dessa vez, a tentativa de assalto aconteceu após a aula de Gestão de Operações. Robson Wesley, de 23 anos, foi abordado às 22h30min quando tomava o rumo para parada de ônibus próxima ao Shopping Benfica. 

Desde o dia 7 de junho de 2019, data do episódio, Robson evita passar por essa rua. Ele conta que sentiu muito medo e agora “aprendeu a pegar o ônibus na Avenida da Universidade ” e quando tem de fazer aquele trajeto, só o faz em grupo.

 

Em outro ponto da cidade, Ramon Mendes foi tomado pelo medo de viver a noite de Fortaleza. O rapaz, de agora 19 anos, estava numa festa no ano de 2017, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, com dois amigos. Juntos decidiram “madrugar intercalando entre o Dragão e o Bar Lions”, localizado no Centro da cidade. Por volta de 2 horas da madrugada, quando voltavam da Praça dos Leões acompanhados de outra turma que fazia o mesmo trajeto, alguns suspeitos começaram a intimidá-los.

 

"Um cara ficou conversando comigo dizendo que eu se não lhe desse dinheiro, ele me mostraria o ferro. Ele focou em mim e não saia. Até que perdi a paciência e entreguei meu relógio. Na mesma hora, uma das pessoas que estavam conosco gritou chamando uns policiais e os trombadinhas correram”.

 

Mas a noite lhe reservava outro episódio ainda mais violento. Depois desse assalto, os amigos esperaram o dia amanhecer a fim de voltarem para casa de transporte público. No ponto de ônibus, três suspeitos coagiram as pessoas que ali aguardavam o coletivo. Um dos assaltantes foi ao encontro de Ramon, enforcando-o com o braço e com o outro “ele fingiu que tinha uma arma”, enquanto o comparsa tirava os pertences que estavam em seu bolso. 

O jovem relata que sua família ficou preocupada, e ele nem sequer contou sobre as agressões físicas. Assustado, ficou sem frequentar o Dragão do Mar durante um tempo. “Isso é um descaso com a sociedade. A gente sai para curtir, mas corre o perigo de ser violentado ou assaltado nas ruas dessa cidade”, desabafa Ramon.

 Pedro, Robson e Ramon não são os únicos a perderem os  seus bens durante à noite. Em   outubro, 47% dos assaltos ocorreram entre 18h e 5h59. Somente entre janeiro e outubro deste ano, já foram contabilizadas 36.441 ocorrências de roubo à pessoa, roubo de  documentos e outros roubos que não estão incluídos no crimes violentos contra o patrimônio 2 (CVP) no Ceará. No que diz respeito aos números de ocorrências de furto

 no Ceará, já foram contabilizados neste ano  46.042 casos; conforme informações da           SSPDS.  


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SOB O OLHAR DA SOCIÓLOGA

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A professora Danielle Nilin é doutora em Sociologia pela UFC. A pesquisadora também é membro da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e vice chefe do Departamento de Ciências Sociais da UFC. Juntamente à socióloga Irlys Bandeira, organizou o livro “A cidade sob o chão do espaço público”. Lançado em agosto deste ano, a obra trata das formas que o espaço público vem adquirindo nos últimos anos, em razão da emergência de novos usos e práticas de sociabilidade. Em entrevista, ela pontuou aspectos de sua pesquisa relativos à violência noturna.

O QUE DIZ O PROFISSIONAL DE SEGURANÇA?

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Ubiratan Mendes, policial há 18 anos. Atualmente segundo sargento do Batalhão de Policiamento de Rondas e Ações Intensivas e Ostensivas (BPRaio).

Embora os dados sobre a violência sejam alarmantes, no mapa de gastos do Ceará, a segurança corresponde a 27,5% do orçamento, enquanto assistência social corresponde a 11%, cultura, desporto, ciência e tecnologia cada um correspondem a mesmo de 5% dos gastos públicos. 

 

Recentemente o governador Camilo Santana anunciou um pacote de investimentos para a Segurança Pública. O chefe do executivo estadual disse que haverão mais dois presídios, duas novas aeronaves e aumentará o efetivo de policiais militares e civis na Capital e no interior, chamando aprovados em concursos anteriores e ainda realizando novos certames. “Nós não vamos arredar um milímetro no combate ao crime”, afirmou o governador.

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